2.8.06
Nelson Rodrigues
Todo mundo sabe que Nelson Rodrigues não tinha nada de tarado, como alguns querem pura e simplesmente rotular, certo?
E por falar em Zuzu Angel, o filho de Nelson - Junior - também era militante de esquerda (era o "Prancha" do MR8)...
Num texto dos mais brilhantes, ele escreve uma carta aberta ao Presidente Figueiredo, publicada no Jornal do Brasil de 13 de junho de 1979: sincera, em parte dramática, mas que ainda assim sua verve não foi posta de lado:
É comprida, mas vale a pena:
"Carta ao general (...) Eu quero falar de presidente. Trata-se do general João Baptista de Figueiredo, que todos nós chamamos de Figueiredo. É certo que muitos falam mal do presidente. Não importa, nada importa. A glória é a soma de palavrões que uma certa figura vai provocando. E, assim, apedrejado por uns, acaba sendo aplaudido de pé, como nos finais de ato.
De Figueiredo, poucas vezes falo. Mas vou falar agora. Gosto de Figueiredo. Vou lhes contar como o conheci. Foi num jogo de escrete, em 1970. Médici convidou-me para ver o jogo da tribuna de honra. Entre parênteses, eu sou um sujeito que fica tenso numa tribuna de honra. “Convencional”, dirão. E eu próprio direi: “convencional”.
O Brasil ganhou e voltei para o Palácio das Laranjeiras na comitiva presidencial. Foi aí que a fatalidade pôs o general Figueiredo no meu caminho. Com ele, estava Andreazza, que se juntou a nós. Tomamos o automóvel. Nada mais doce do que esta carona do Figueiredo. Ele era, então, chefe do Gabinete Militar de Médici. (...) O presidente tem o rosto dos Figueiredos. Nunca me passou pela cabeça que o destino do meu filho Nelson Rodrigues Filho pudesse depender de João Baptista. E, então, esta carta deixa de ser dirigida ao Jornal do Brasil, e passa a ser dirigida ao presidente Figueiredo.
Figueiredo,
O que eu queria te dizer é que é estranho ser bem tratado pelo presidente da República. (Um dia, eu, doente, precisei falar com o presidente. Ainda vacilei. (...) Acabei ligando. Disse quem era e ele veio me atender. Admirável a recepção que nos fez. Em grandes brados, me tratou na palma da mão. Eu tinha um pedido e o fiz. Se ele me atendeu, permitam uma certa discrição).
Bom. É chegado o momento de falar de anistia. Eis o que eu queria dizer, a você mesmo, meu querido João Baptista:
Quis o destino que meu filho, Nelson, na altura dos 24 anos, entrasse na clandestinidade. Talvez um dia, eu escreva todo um romance sobre a clandestinidade e a prisão de meu filho. A prisão não é tudo. (Preciso chamar você, novamente, de senhor). O senhor precisa saber que meu filho foi torturado. Isso me foi ocultado pelo Nelsinho, por causa do meu estado de saúde.
Ora, (...) há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não têm sentido. Imagine o preso chegando à boca de cena para anunciar:
– Senhoras e senhores: comunico que quase fui anistiado.
Não se faz isso para uma platéia internacional abismada. Que se dirá em todas as línguas e sotaques? E que dirá o próprio Deus? Bem, nunca se acreditou tão pouco em Deus. Mas não importa, nada importa, o que importa é o que disse Dostoievski, certa vez:
– Se Deus não existe, então tudo é permitido.
Estou dizendo tudo isso, Figueiredo, de coração para coração, de alma para alma. Dirão os Lorpas e Pascácios:
– O presidente não está sozinho.
Está. Se der a anistia que Deus quer.
João Baptista, meu filho Nelsinho vai ter o filho na prisão, em agosto. Deus te ame eternamente, Figueiredo.
E por falar em Zuzu Angel, o filho de Nelson - Junior - também era militante de esquerda (era o "Prancha" do MR8)...
Num texto dos mais brilhantes, ele escreve uma carta aberta ao Presidente Figueiredo, publicada no Jornal do Brasil de 13 de junho de 1979: sincera, em parte dramática, mas que ainda assim sua verve não foi posta de lado:
É comprida, mas vale a pena:
"Carta ao general (...) Eu quero falar de presidente. Trata-se do general João Baptista de Figueiredo, que todos nós chamamos de Figueiredo. É certo que muitos falam mal do presidente. Não importa, nada importa. A glória é a soma de palavrões que uma certa figura vai provocando. E, assim, apedrejado por uns, acaba sendo aplaudido de pé, como nos finais de ato.
De Figueiredo, poucas vezes falo. Mas vou falar agora. Gosto de Figueiredo. Vou lhes contar como o conheci. Foi num jogo de escrete, em 1970. Médici convidou-me para ver o jogo da tribuna de honra. Entre parênteses, eu sou um sujeito que fica tenso numa tribuna de honra. “Convencional”, dirão. E eu próprio direi: “convencional”.
O Brasil ganhou e voltei para o Palácio das Laranjeiras na comitiva presidencial. Foi aí que a fatalidade pôs o general Figueiredo no meu caminho. Com ele, estava Andreazza, que se juntou a nós. Tomamos o automóvel. Nada mais doce do que esta carona do Figueiredo. Ele era, então, chefe do Gabinete Militar de Médici. (...) O presidente tem o rosto dos Figueiredos. Nunca me passou pela cabeça que o destino do meu filho Nelson Rodrigues Filho pudesse depender de João Baptista. E, então, esta carta deixa de ser dirigida ao Jornal do Brasil, e passa a ser dirigida ao presidente Figueiredo.
Figueiredo,
O que eu queria te dizer é que é estranho ser bem tratado pelo presidente da República. (Um dia, eu, doente, precisei falar com o presidente. Ainda vacilei. (...) Acabei ligando. Disse quem era e ele veio me atender. Admirável a recepção que nos fez. Em grandes brados, me tratou na palma da mão. Eu tinha um pedido e o fiz. Se ele me atendeu, permitam uma certa discrição).
Bom. É chegado o momento de falar de anistia. Eis o que eu queria dizer, a você mesmo, meu querido João Baptista:
Quis o destino que meu filho, Nelson, na altura dos 24 anos, entrasse na clandestinidade. Talvez um dia, eu escreva todo um romance sobre a clandestinidade e a prisão de meu filho. A prisão não é tudo. (Preciso chamar você, novamente, de senhor). O senhor precisa saber que meu filho foi torturado. Isso me foi ocultado pelo Nelsinho, por causa do meu estado de saúde.
Ora, (...) há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não têm sentido. Imagine o preso chegando à boca de cena para anunciar:
– Senhoras e senhores: comunico que quase fui anistiado.
Não se faz isso para uma platéia internacional abismada. Que se dirá em todas as línguas e sotaques? E que dirá o próprio Deus? Bem, nunca se acreditou tão pouco em Deus. Mas não importa, nada importa, o que importa é o que disse Dostoievski, certa vez:
– Se Deus não existe, então tudo é permitido.
Estou dizendo tudo isso, Figueiredo, de coração para coração, de alma para alma. Dirão os Lorpas e Pascácios:
– O presidente não está sozinho.
Está. Se der a anistia que Deus quer.
João Baptista, meu filho Nelsinho vai ter o filho na prisão, em agosto. Deus te ame eternamente, Figueiredo.
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