27.2.06
Um subúrbio a três quilômetros do centro de São Paulo
O pateta do meu vizinho sai de casa às pressas, acha que bate a porta e vai-se embora. Os monstros que ele cria — um rottweiler e um pseudo-pitbull — passam o focinho na maçaneta, abrem a porta e vêm para o hall do prédio. Não saem para o pátio porque a porta do prédio tem uma mola que, se não a tranca, ao menos a deixa mais fechada que aberta.
Outro vizinho — recém-mudado para cá, coitado — chega da rua e, se não fosse de circo, era comido pelos dois logo à entrada, como primeiro prato. Safa-se dos canibais, bate a porta do prédio e fica do lado de fora. Seguro, é verdade, mas preso fora de casa.
Daqui de cima, escuto a confusão e vou à janela: o vizinho preso na rua, branco como um palmito; está começando a chover; minha empregada acabou o serviço e precisa ir embora; minha mulher está para chegar; o filho da vizinha de baixo quer sair de casa para brincar. E os dois monstros se debatem com a porta fechada, furiosos, e se debaterão enquanto ela resistir às patadas. E agora? Telefono para os bombeiros:
— Bombeiros, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda ao bombeiro, lembrando que vi seus colegas, noutro dia, socorrendo um gato preso no telhado de outra vizinha.
— O senhor há de convir que um gato não é um rottweiler... — retruca o homem, com um tom assustado na voz.
— Um rottweiller e um pitbull. — corrijo.
— Sim, e mais essa! Nós nem temos equipamento para isso!
— E o que o senhor sugere? — pergunto, encurralado.
— Que o senhor chame a polícia.
— E eles têm equipamento?
— Eles têm armas. Pode ser que ajude.
Eu agradeço e desligo. Essa é exatamente a ajuda que eu quero, mas a última que posso solicitar. Eu só quero prender os cachorros, não enterrá-los. Mesmo assim, ligo para a polícia, enquanto os monstros se debatem com a porta do prédio.
— Polícia Militar, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda novamente, mencionando o que foi conversado com os bombeiros, suprimindo a parte do "equipamento".
— E o que o senhor quer que a gente faça?
— Ora! — digo eu — Sei lá! Estou telefonando para que vocês me digam o que fazer!— Acho que senhor deve prestar queixa na delegacia e registrar um boletim de ocorrência.
— Amigo, eu lhe juro que faço isso tão logo possa sair de casa. Mas, entrementes, o que o senhor sugere?
— Bem... eu posso mandar uma viatura...
— E, se me permite a curiosidade, exatamente o que essa viatura faria?
— Os policiais poderiam tentar entrar no prédio...
— E se não conseguissem?
— Annn... acho que eles teriam que atirar.
— Ah, não! Deixa pra lá! Vou ver por aqui se eu arranjo outra maneira.— Não quer mesmo que mande a viatura? — insiste o homem.
— Não, obrigado. Se a situação piorar, pode deixar que eu ligo de novo.Desligo e procuro o telefone da Carrocinha, também conhecida por Centro de Controle de Zoonoses. Não existe. É preciso ligar para o número central da Prefeitura, entrar no menu "outras informações", esperar meia hora e...
— Prefeitura, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda mais uma vez, enfatizando a parte dos tiros, para ver se sensibilizo alguém. Fico muito feliz quando ouço a senhorita me dizer:
— Vou registrar seu pedido de remoção. O senhor pode me passar alguns dados?
E eu lhe passo nome, endereço, RG, condições geográficas e topográficas do prédio, a raça dos cachorros, desde que horas estão soltos, quem corre riscos, o diabo.
— Sua solicitação já está registrada, senhor. — ela informa, feliz.
— Ótimo. E agora?
— Agora é só aguardar 72 horas, e a viatura será encaminhada para o local.
— O quê? — me descontrolo. — Minha filha, em 72 horas, os cachorros já morreram de fome, e eu só vou precisar de uma carrocinha para carregá-los para o cemitério!
— Desculpe, senhor, mas este é o prazo padrão para estas ocorrências...
— Setenta e duas horas? Tenha paciência! Olha, me dê um número qualquer do Centro de Controle de Zoonoses, qualquer um, da cozinha, do vestiário, qualquer coisa serve, por favor, de qualquer departamento. Eu me viro!Ante o meu destempero, ela desobedece ao manual e me dá um número. Eu agradeço, desligo e ligo para a Carrocinha.
— Zoonoses, boa tarde. — e eu, mais uma vez, conto a história toda, mais uma vez, e de novo, relatando a conversa com os bombeiros, com a polícia e com a Prefeitura.
— Só um minuto, vou passar para a veterinária de plantão. — e passa para a veterinária de plantão.
— Veterinária, em que posso ajudá-lo?E eu digo. Digo tudo. Conto a história toda, falo do medo dos bombeiros, da solução final proposta pela polícia, do descaso da Prefeitura, do meu vizinho branco feito um palmito, agora sob a chuva, da minha empregada que precisa ir embora, da minha mulher que está para chegar, do filho da vizinha que quer brincar, falo de mim mesmo, que tenho mais o que fazer do que ficar protegendo a vida de dois cachorros filhos da puta que me matariam para comer — no melhor sentido da palavra.
Sensibilizada, a veterinária me pergunta:
— Em que bairro o senhor está?
— Na Aclimação. Faz diferença?
— Então o senhor faça assim: volte a ligar para a Prefeitura, não diga que falou comigo, registre sua solicitação, pegue o número do protocolo que a atendente vai lhe dar. Daí, me telefone novamente, e eu poderei liberar a viatura para remover os animais. Sem esse número, o carro não pode sair.
Eu paro de tremer, me recomponho, agradeço muito e parto para minha Via Sacra, a lhe refazer os últimos quarteirões, já conhecidos. Em quinze minutos, tenho o número sagrado, os algarismos mágicos, a senha divina que fará com que os dois cérberos voltem para o inferno de onde escaparam. Telefono mais uma vez para a Carrocinha — o mais civilizado e coerente órgão público desta cidade demente — e passo a senha à bondosa Santa Veterinária que nos protege a todos, amém.
Agradeço, desligo, e vou à janela informar a vizinhança que, a esta altura, está aglomerada no pátio, debaixo de chuva, a ouvir minha gritaria telefônica. Antes que termine o relato que começo a lhes fazer, vejo meu vizinho, o dono dos cachorros, entrar pelo portão da rua, com cara de "perdi alguma coisa?".
Deve ser por isso que é proibido ter armas em casa. Da próxima vez, ligo só para a Polícia, e que se foda!
Sem palavras!
Só indo até lá para ver de perto e devorar o histórico inteiro desse blog sem conteúdo. Só no nome.
O pateta do meu vizinho sai de casa às pressas, acha que bate a porta e vai-se embora. Os monstros que ele cria — um rottweiler e um pseudo-pitbull — passam o focinho na maçaneta, abrem a porta e vêm para o hall do prédio. Não saem para o pátio porque a porta do prédio tem uma mola que, se não a tranca, ao menos a deixa mais fechada que aberta.
Outro vizinho — recém-mudado para cá, coitado — chega da rua e, se não fosse de circo, era comido pelos dois logo à entrada, como primeiro prato. Safa-se dos canibais, bate a porta do prédio e fica do lado de fora. Seguro, é verdade, mas preso fora de casa.
Daqui de cima, escuto a confusão e vou à janela: o vizinho preso na rua, branco como um palmito; está começando a chover; minha empregada acabou o serviço e precisa ir embora; minha mulher está para chegar; o filho da vizinha de baixo quer sair de casa para brincar. E os dois monstros se debatem com a porta fechada, furiosos, e se debaterão enquanto ela resistir às patadas. E agora? Telefono para os bombeiros:
— Bombeiros, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda ao bombeiro, lembrando que vi seus colegas, noutro dia, socorrendo um gato preso no telhado de outra vizinha.
— O senhor há de convir que um gato não é um rottweiler... — retruca o homem, com um tom assustado na voz.
— Um rottweiller e um pitbull. — corrijo.
— Sim, e mais essa! Nós nem temos equipamento para isso!
— E o que o senhor sugere? — pergunto, encurralado.
— Que o senhor chame a polícia.
— E eles têm equipamento?
— Eles têm armas. Pode ser que ajude.
Eu agradeço e desligo. Essa é exatamente a ajuda que eu quero, mas a última que posso solicitar. Eu só quero prender os cachorros, não enterrá-los. Mesmo assim, ligo para a polícia, enquanto os monstros se debatem com a porta do prédio.
— Polícia Militar, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda novamente, mencionando o que foi conversado com os bombeiros, suprimindo a parte do "equipamento".
— E o que o senhor quer que a gente faça?
— Ora! — digo eu — Sei lá! Estou telefonando para que vocês me digam o que fazer!— Acho que senhor deve prestar queixa na delegacia e registrar um boletim de ocorrência.
— Amigo, eu lhe juro que faço isso tão logo possa sair de casa. Mas, entrementes, o que o senhor sugere?
— Bem... eu posso mandar uma viatura...
— E, se me permite a curiosidade, exatamente o que essa viatura faria?
— Os policiais poderiam tentar entrar no prédio...
— E se não conseguissem?
— Annn... acho que eles teriam que atirar.
— Ah, não! Deixa pra lá! Vou ver por aqui se eu arranjo outra maneira.— Não quer mesmo que mande a viatura? — insiste o homem.
— Não, obrigado. Se a situação piorar, pode deixar que eu ligo de novo.Desligo e procuro o telefone da Carrocinha, também conhecida por Centro de Controle de Zoonoses. Não existe. É preciso ligar para o número central da Prefeitura, entrar no menu "outras informações", esperar meia hora e...
— Prefeitura, boa tarde.
— Boa tarde. — e conto a história toda mais uma vez, enfatizando a parte dos tiros, para ver se sensibilizo alguém. Fico muito feliz quando ouço a senhorita me dizer:
— Vou registrar seu pedido de remoção. O senhor pode me passar alguns dados?
E eu lhe passo nome, endereço, RG, condições geográficas e topográficas do prédio, a raça dos cachorros, desde que horas estão soltos, quem corre riscos, o diabo.
— Sua solicitação já está registrada, senhor. — ela informa, feliz.
— Ótimo. E agora?
— Agora é só aguardar 72 horas, e a viatura será encaminhada para o local.
— O quê? — me descontrolo. — Minha filha, em 72 horas, os cachorros já morreram de fome, e eu só vou precisar de uma carrocinha para carregá-los para o cemitério!
— Desculpe, senhor, mas este é o prazo padrão para estas ocorrências...
— Setenta e duas horas? Tenha paciência! Olha, me dê um número qualquer do Centro de Controle de Zoonoses, qualquer um, da cozinha, do vestiário, qualquer coisa serve, por favor, de qualquer departamento. Eu me viro!Ante o meu destempero, ela desobedece ao manual e me dá um número. Eu agradeço, desligo e ligo para a Carrocinha.
— Zoonoses, boa tarde. — e eu, mais uma vez, conto a história toda, mais uma vez, e de novo, relatando a conversa com os bombeiros, com a polícia e com a Prefeitura.
— Só um minuto, vou passar para a veterinária de plantão. — e passa para a veterinária de plantão.
— Veterinária, em que posso ajudá-lo?E eu digo. Digo tudo. Conto a história toda, falo do medo dos bombeiros, da solução final proposta pela polícia, do descaso da Prefeitura, do meu vizinho branco feito um palmito, agora sob a chuva, da minha empregada que precisa ir embora, da minha mulher que está para chegar, do filho da vizinha que quer brincar, falo de mim mesmo, que tenho mais o que fazer do que ficar protegendo a vida de dois cachorros filhos da puta que me matariam para comer — no melhor sentido da palavra.
Sensibilizada, a veterinária me pergunta:
— Em que bairro o senhor está?
— Na Aclimação. Faz diferença?
— Então o senhor faça assim: volte a ligar para a Prefeitura, não diga que falou comigo, registre sua solicitação, pegue o número do protocolo que a atendente vai lhe dar. Daí, me telefone novamente, e eu poderei liberar a viatura para remover os animais. Sem esse número, o carro não pode sair.
Eu paro de tremer, me recomponho, agradeço muito e parto para minha Via Sacra, a lhe refazer os últimos quarteirões, já conhecidos. Em quinze minutos, tenho o número sagrado, os algarismos mágicos, a senha divina que fará com que os dois cérberos voltem para o inferno de onde escaparam. Telefono mais uma vez para a Carrocinha — o mais civilizado e coerente órgão público desta cidade demente — e passo a senha à bondosa Santa Veterinária que nos protege a todos, amém.
Agradeço, desligo, e vou à janela informar a vizinhança que, a esta altura, está aglomerada no pátio, debaixo de chuva, a ouvir minha gritaria telefônica. Antes que termine o relato que começo a lhes fazer, vejo meu vizinho, o dono dos cachorros, entrar pelo portão da rua, com cara de "perdi alguma coisa?".
Deve ser por isso que é proibido ter armas em casa. Da próxima vez, ligo só para a Polícia, e que se foda!
Sem palavras!
Só indo até lá para ver de perto e devorar o histórico inteiro desse blog sem conteúdo. Só no nome.
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